quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Perdi-me no adro da igreja

Em meados da década de cinquenta do século passado havia uma fonte chã de água ao cimo do adro da igreja a que chamávamos Funtoz. Esta designação era dada às poças de água de nascente limitadas por pedras de xisto colocadas ao cutelo que sustinham a água. Tanto quanto me lembro esta fonte tinha água durante todo o ano e era utilizada para lavar a roupa e para as galinhas, perus e parrecos beberem.
Esse dia em particular estava a lavar nessa fonte a Tia e por ali serpenteávamos , em brincadeiras da nossa idade, eu com quatro anos e o meu irmão José com dois anos. Deviam ser estas as nossas idades pois o Zé já andava e eu como que tomava conta dele desde que não saíssemos muito da beira da Tia.
Esta situação, lembro-me passou-se quando morávamos na rua do Fundão, ou seja em 1957 ou depois, porque a nossa casa foi construída em 1957, conforme data que tem no frontispício. Durante a sua construção tínhamos vivido na casa do meu avô Francisco, ali à Rua dos Paus, onde mais tarde o meu primo Tomás fez a sua casa.
Contam que era muito atinadinho e sossegado e que na casa do meu avô a minha mãe me deixava na varanda com um naco de mão centeio e um penico e vestido com um bibe. O meu irmão João, mais velho três anos, esse é que não parava, estava sempre na jolda pelo povo fora.
A Tia era a nossa madrinha, irmã da minha mãe e madrinha de quase todos os meus irmãos. Ainda hoje e já velhinha é a Tia! Mesmo o seu filho lhe chamava tia. Como para quase sempre na vida há uma explicação, também aqui há uma razão para lhe chamarmos tia, apesar de termos mais tias. Para as outras tias usávamos a palavra tia seguida do seu nome. Mas para a tia Carmelinda era a Tia. Já ao meu tio António, marido da Tia, sempre chamámos padrinho.
E a razão de ser a Tia é que os meus pais tiveram muitos filhos e quase invariavelmente era padrinhos de baptismo o meu tio António, irmão do meu pai, e a minha tia Carmelinda, irmã da minha mãe. Foram dois irmãos que casaram com duas irmãs.
Como os meus pais eram mais velhos, casaram antes e tiveram também filhos antes dos meus padrinhos. Por conseguinte quando nasceu a Elisa, minha irmã mais velha, os meus padrinhos ainda não eram casados. Quando foi baptizada foram padrinhos da Elisa o tio António e a tia Marquinhas, os dois irmãos mais novos do meu pai. Quando a minha irmã começou a falar chamava naturalmente Padrinho ao seu padrinho, Madrinha à sua madrinha e Tia à sua tia Carmelinda!
E depois da Elisa nasceram a Helena, a Carminda, o Francisco, o João, o António que sou eu, o José, o Martinho e o Armando. Houve ainda outros filhos que não vingaram, tendo morrido pequeninos.
Como a Elisa chamava Tia à tia, todos os outros lhe seguiram o exemplo, apesar de ser ela a madrinha de todos os restantes. Como as casas do meu pai e do meu padrinho eram uma em frente da outra, o filho da Tia aprendeu também a chamar tia à sua própria mãe.

Estava então a tia a lavar na funtoz e na sua roda o Zé e eu na brincadeira, talvez com um pedaço de cortiça a fazer de carro de bois bem carregado de feno.
Quando dei por ela o Zé, com dois anos, já não estava à minha beira e não sabia para onde tinha ido. Estando tão perto do adro da igreja resolvi ir a dar a volta ao adro a ver se o via por “estar à minha guarda”. Convém referir que o adro da igreja fazia um U em sua volta, rodeando-a havendo duas entradas uma de cada lado da igreja. Havia ainda outra entrada que dava para o fundo do povo. A Funtoz era do outro lado da rua e pertinho de uma das entradas de cima, no caso perto da perna direita do U.
Entrei então no adro e dei a volta ao adro. Entretanto a Tia deixou de ver os seus dois sobrinhos e foi a casa, a cerca de cem metros. Como o Zé tinha ido para casa, rapidamente o encontraram, mas de mim é que ninguém sabia.
Dado como perdido, foram então outra vez à funtoz, agora já vinha a minha tia uma das minhas irmãs, penso que a Elisa, com o pequeno Zé ao colo. Entretanto vinha eu a subir o adro quando os vi a todos. Como tinha perdido o Zé eu estava a chorar e foi a chorar que me viram quando me encontraram! E o que ficou para a história foi que o António, o Toninho ou o Tóino, se perdeu no adro da igreja e que foi o Zé, com dois anos que foi a saber dele e que o encontrou.

Quando era novito ainda tentei repor a verdade, mas nunca consegui! Quando comecei a ter juízo das coisas achei que a versão da verdade dos outros era bem mais interessante do que a minha e desisti da minha versão.
Porém como a verdade é só uma, aqui fica a verdade verdadeira de eu me ter perdido no adro da igreja. Será que estarei, em termos psíquicos, a caminhar para a meninice?

António Magalhães
Enviado por email

3 comentários:

Dulce disse...

bela nostaligia ler este blog..........palavras minhas, tuas e de todos os que aí nasceram....
obrigada

José Moredo disse...

Amigo Antônio Magalhães. Que belo comentário! Eu também tenho vários episódios desse tipo, só que dos anos de 1947 a 1950, pois sou da idade da tua irmã Eliza e Helena. Quem sabe um dia me animo a contá-los.
Abroços
José Moredo

António Magalhães disse...

Pois aqui fica o desafio, amigo José Manuel, arranje-se!
Costuma dizer-se quem quer fazer arranja tempo e quem não quer arranja desculpas!

Não veja este provérbio como uma provocação, antes como um desafio.

Sabe que sou seu admirador e apesar disso também tenho feito uso daquele provérbio para me esquivar aos seus convites dos encontros em Brunhoso, nas suas vindas. Saiba porém que a seguir sigo a informação que o nosso Mestre Aníbal disponibiliza na Página.

Um abraço

António Magalhães